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“Dissemelhanças Ontem na Floresta” é um encontro entre dois projectos com linguagens, origens e matérias distintas. A floresta foi o espaço deste encontro, lugar simbólico que define um ecossistema selvagem, que a olhos humanos pode aparecer desordenado, labiríntico e potencialmente perigoso. Mas a floresta é também símbolo de abundância, coabitação inter-espécies e a celebração de um estado natural das coisas. Esse encontro apresenta-se também num tempo anterior ao presente – qualquer um. Ontem, na floresta, esteve-se no território embrumado da criação.
O encontro entre dois trabalhos-organismos é também a reunião de dois Jardim(s) – pai e filha. Apresentamos, pela primeira vez, os nossos projectos em conjunto, inaugurando 2025 com uma exposição em dupla (ano em que o meu pai terá o dobro da minha idade). Esta exposição tem, portanto, características especiais, que me motivam a escrever um texto sobre dois conjuntos de trabalhos que conheço de perto, desde o interior da pessoalidade. Cresci a conhecer o trabalho do meu pai e ele acompanhou o crescimento do meu – é apenas a partir deste lugar subjetivo que posso escrever um pouco sobre os nossos trabalhos mais recentes, que apresentamos nesta exposição.
O conjunto inédito que o meu pai apresenta tem a sua origem numa estaca de areia. O corpo do seu trabalho, com o qual sempre convivi, materializa-se em séries inspiradas num vasto leque de objetos naturais e humanos: crânios, asas, aranhas, coroas, barbatanas, barcos – formas pré-existentes que, em si mesmas, são já sugestivas de esculturas. A sua atitude em relação ao trabalho em série define-se como uma progressão orgânica que começa no objecto e se vai desmultiplicando em esculturas, que “saem umas das outras”, num exercício de afastamento da origem até à sua concretização como corpo escultórico. A estaca transforma-se, torna-se multifacetada, simétrica, ganha simetria radial, emerge do solo para ganhar verticalidade e, com isso, ocupar o espaço do caminho. No trilho deste caminho, as esculturas erguem-se como árvores, mas também como instrumentos, que medem um espaço e um tempo sui generis, onde, a partir do rigor formal da sua execução, se podem inventar a gosto unidades de medida – como quem escolhe uma braça, uma vara, um passo, um pé, um palmo –, assim como aquilo que pode com elas ser medido.
A série de pinturas que mostro explora a imagem de Faustine, uma personagem auto-ficcional inspirada na heroína fantasmagórica de A Invenção de Morel, romance que Adolfo Bioy Casares escreveu em 1940. Tal como no romance de Bioy Casares, a minha Faustine habita um limbo entre a realidade e a imagem. Apropriei-me da sua dimensão fantástica, extra-real, para pensar que imagens são essas da criatividade – e onde desenhamos os seus limites. Este é um convite a pensar o onírico, o desejo, a platonia, a auto-mitologia, como actos criativos. O desdobramento da sua imagem de Faustine acontece para descobrir a personagem, dar-lhe corpo, passado e presença, como na construção de um conto. Tal como numa iconografia mitológica, quais são os atributos que permitem reconhecer Faustine? A complexidade da personagem desenha-se na multiplicidade das suas acções e dos seus atributos: Faustine pode ser entendida como a entidade que se supõe habitar a floresta, mais que dêitica, ela é ancestral, independente e tem um dedo mágico capaz de fazer fogo – cuidado. A complexidade da personagem desenha-se na multiplicidade das suas ações.
Estes dois conjuntos de trabalhos confrontam-se entre tridimensionalidade e bidimensionalidade, entre objetualidade e imagem, abstracionismo e figuração, estrutura e narrativa, entre presença física e evocação simbólica. “Dissemelhanças Ontem na Floresta” define um encontro dissonante num território ambíguo, embrumado e labiríntico, mágico e criativo. Encontro que acontece num tempo trans temporal, apenas imediatamente antes de qualquer hoje.
Carlota Jardim
Nota curatorial
Nesta apetitosa conversação proposta pelos Jardim (uso o termo gastronómico pela sua capacidade de sugerir a vivacidade da proposta que ambos congeminaram nos seus ateliês), podemos certamente falar de “dissemelhanças”. O paradoxo é que tais dissemelhanças são experienciáveis como paradoxal sintonia – talvez porque ambas as linguagens resultem de puras e verdadeiras investigações plásticas. Esta exposição, na sua dinâmica particularmente clara, é experiência da mostra de arte como cenografia de tempo(s) estranhamente contíguo(s) – no caso, duas linguagens que, precisamente porque vivamente complementares, se dão mutuamente a ver; e nisto oferece uma particularmente eficaz pedagogia do olhar e do atravessar. Será mera coincidência que tenhamos, de um lado, a pureza radical do telúrico, transmutado em geometria – ou seja, o térreo dignificado pela ideia –, e do outro a ingenuidade frontal do humano – ou seja, o terreno redimido pelo gesto? MCC
Gonçalo Jardim (Lisboa, 1964) é licenciado em escultura da FBAUL (1988 – 1993). Detém o mestrado em Artes Visuais – Intermédia (variante Tridimensional) com a tese “Uma visão escultórica da obra de Santiago Calatrava”. É doutorando – com plano de tese aprovada – em Arquitectura da Escola de Artes da Universidade de Évora, onde é professor desde 2002. Vive e trabalha perto de Évora e também com o mar em mente. Expõe individual e coletivamente desde 1990.
Carlota Jardim (Lisboa, 1995) é artista plástica. Vive e trabalha nas Caldas da Rainha. No seu trabalho explora a tradução pictórica de experiências pessoais, através da pintura, do desenho e do texto. É licenciada em Pintura pela FBAUL (2014-18) e concluiu o Mestrado em Artes Plásticas – Especialização em Pintura pela FBAUP (2020-22). Foi-lhe atribuído em 2022 o Prémio de Mérito Académico “Prémio Alexandre Viana de Lima” (UP/CM Esposende).