Entre o estuário do Tejo e o delta do Ebro

Acid Flamingo

Nuno Cera

Natureza | Paisagem | Território | Animal | Fotografia | Poesia

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Uma fábula moderna
Natureza | Paisagem | Território | Animal | Fotografia | Poesia

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Uma fábula moderna
Acid Flamingo é uma investigação artística e poética no estuário do Tejo (Lisboa, Portugal) e no delta do Ebro (Catalunha, Espanha). A partir de uma expedição a dois pontos quase opostos na península Ibérica, este projeto de Nuno Cera, é concebido como uma fábula que tem como protagonista o Phoenicopterus roseus – o flamingo – e ao mesmo tempo capta uma memória da paisagem destes dois estuários neste momento de emergência climática.

The acknowledgment of multiple other worlds, the worlds of others, is key to disentangling ourselves from our greatest social and technological deception, and re-entangling ourselves with a more meaningful and compassionate cosmology. 

[O reconhecimento de múltiplos mundos, dos mundos dos outros, é chave para nos desembaraçarmos da nossa maior deceção social e tecnológica, e nos reconectarmos com uma cosmologia mais compassiva e significativa.]

James Bridle, Ways of Being (2022)

ACID FLAMINGO

 

Será real?

Quando tudo é credível e nada é verdade.

Gostaria de falar de outras coisas, mas não há outra coisa.  

Gostaria de falar do semáforo das asas do peneireiro.

Gostaria de falar do espectro de corujas com o seu chamamento de telégrafo.

Gostaria de falar da águia-marinha, que alguns consideram a mais bela ave do mundo.

Gostaria de falar do camão púrpura, do abibe, da íbis-preta reluzindo iridescente e asfalto como o estorninho. E, claro, da gralha-preta e do corvo, sobre os quais já se disse o bastante.

Ou da águia-sapeira, com rosto de Júpiter e à procura. Há tantas aves perfeitas.

 

Mas foi o guarda-rios que veio veloz corrente abaixo.

Veloz corrente abaixo em emergência.

Dividindo as margens com techno e sonar.

Um chamariz de pesca feito de pirite e safira, código morse e madrepérola.

Foi o guarda-rios que deu as notícias.

 

Falou de navios de cruzeiro altos como cidades e cidades inteiras espalmadas em ímanes para o vosso frigorífico. Falou de uma máquina que recorda tudo. Uma máquina que nunca esquece.

Um sistema nervoso sem corpo. O sonho febril do Antropoceno.

 

E, depois, falou-me. O flamingo.

Pheonicopterus roseus.

O Flamingo Grande.

A mim todo.

 

Avisou-me que o predador se esconde na plena luz do dia —como uma lente.

Falou de uma grande ave negra. Uma sombra, sem nada de ave. A sombra lançada pela ausência de todas as aves. E depois foi-se. Continuando os seus lances rio abaixo em direcção ao mar.

 

Viajei 50 milhões de anos para chegar aqui. Sou tão antigo como os morcegos.

Como sei onde vou? E que quando lá chegar nada de nada haverá lá?

 

Não sou uma ave migratória.

Sou um viajante—como tu.

Sou um astrolábio e um sextante e um poeta.

Sou também um matemático.

 

A imagem que estás a ver tem mais de 2 biliões de anos. Um fóssil químico e cinemático.

Uma pintura rupestre viva, gerada por criaturas de outra ordem.

 

Um organismo fotossintético chamado Cyanobacteria começou a segregar um elemento invasivo na atmosfera terrestre. Oxigénio. Essa molécula altamente reactiva desalojou a atmosfera vulcânica, matando quase tudo no planeta. E resultando numa revolução de oxigénio.

 

As Cyanobacteria são a forma de vida mais bem-sucedida e numerosa que jamais existiu.

São as responsáveis pela vida na Terra tal como a conhecemos. Incluindo a produção de carotenoides, o pigmento orgânico responsável pela minha cor característica. O rosa. O fulgor das viagens no tempo. E é aqui que convergimos e nos reunimos, em torno do cinema de cristais líquidos das salinas.

 

E agora, biliões de anos mais tarde, estamos no precipício de mais uma revolução microscópica anunciada por um novo táxon de micro-organismos à escala planetária. Micro-plásticos e pixels.

 

Que criaturas efervescentes se dissolverão na solução ácida?

E eis a nova forma de vida, ou semelhante-a-vida, que floresce na sua esteira.

Estou na encruzilhada do real e do real replicante —sobre uma perna.

Se quiseres sonhar como um flamingo terás de dormir com as marés.

 

Lembras-te quando eras humano?

 

A arcádia nunca aqui existiu, a não ser durante o momento estroboscópico em que este lugar é gerado por nós habitando-nos uns aos outros. Mas a cada iteração de maior resolução o mundo perde fidelidade. Até ser só uma cópia. Um turismo de si próprio.

 

E um dia o delta terá desaparecido. As tempestades estão a ficar mais fortes. A montante, a água está a ser desviada para arrefecer a máquina. O mar acabará por vir e levar tudo.

 

Querem fazer um aeroporto aqui.

Já aqui existe um aeroporto.

Estamos aqui. Escuta. Tudo isto uma memória.

Um arquivo de uma coisa que aconteceu em tempos.

E nunca torna a acontecer.

 

Onde estarei quando precisares de mim?

Uma cópia original como tu.

Quando também foste um animal.

Sou já um alienígena prístino.

Mas a nossa senciência é partilhada enquanto o outro de cada um de nós.

O que signifiquei para ti? Por que fui um fac-símile de mim próprio?

 

Paraíso

 

Um refúgio no interior dos padrões que nos mantêm juntos.\

 

Jeff Wood

Conceito de Nuno Cera e Julia Albani

Texto: Jeff Wood

Drone: Pedro Farto

Música: Tarzana: Aerofoils in heat

Créditos: Jan Anderzen e Spencer Clark

Pós-produção áudio: Eduardo Vinhas

Tradução: Rui Cascais

Apoio: Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa

 

Agradecimentos: Ana Andrade – Evoa – Espaço de visitação e observação de Aves; André Batista – Salinas do Samoco; Afonso Rocha; José Alves – Universidade de Aveiro; Francesc Vidal e Julia Piccardo Valdemarin – Natural Parc Delta del’Ebre; Joana Rafael; André Tavares; Mariana Pestana; Galeria Miguel Nabinho; SEO/Birdlife – Riet Vell Nature Reserve.

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