Leitura comunitária

PALAVRAS QUOTIDIANAS

Rita Tormenta, Joaquim Paulo Nogueira e Abel Fava Caipira

Palavra . Poesia . Literatura . Quotidiano . Homenagem . Livro

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Sarau literário e homenagem
Palavra . Poesia . Literatura . Quotidiano . Homenagem . Livro

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Sarau literário e homenagem
Três autores, três situações de leitura comunitária. A sessão abre com cinco mulheres a lerem poemas d’O Pequeníssimo Livro de Ti de Rita Tormenta. Num segundo momento, Joaquim Paulo Nogueira, depois de indicações para o casting fornecidas nos bastidores da ação (pasta de textos previamente distribuída), orienta três homens e duas mulheres na leitura teatral do último capítulo do seu romance Puta.

Palavras Quotidianas é o segundo sarau literário do C—T. O título é compromisso com as palavras que pensam o real, cruzando temas: a vida da mulher no dia-a-dia, a violência doméstica, a atmosfera sociocultural – no Torrão, num passado que é viva memória ainda hoje.

Com o título “XXXV”, o poema de Rita Tormenta que abre a sessão é extraordinária figura de convite. Em baixo, os quatro primeiros versos:

Tenho um pátio andaluz no meio de mim.

Todo água, espelhos e pedras preciosas.

É lá que te quero sem verbo nem averbamento.

Secreto soneto escrito na pele.

 

Noutro poema – XXIV –, lemos o retrato de uma Mulher Contemporânea, assumindo-se personagem de seu tempo:

Serei Medusa e Medeia, Messalina e Joana

D’Arc.

Serei a vizinha louca do 4º dto.

Serei a mãe dos filhos que um por um me irão
devorando e odiando.

Serei aquela que foi mulher de, a que é amiga de e amante de.

Serei a que paga as contas do meu rosário com
o meu odioso salário.

Serei a que desperta fúrias e desprezos mile-
nares, serei a que te convida para a cama, mas
não serei a que cozinhar para ti.

 

Rita Tormenta nasceu em 1970 no Porto, cresceu em Lisboa e atualmente habita em Almada. Possui formação em Teatro. (IFCT, Estc, Flul) Concebeu e executou vários projectos na área da educação sensível. Foi durante duas décadas professora de expressão dramática em diversas escolas. Quando se despenhou da montanha utópica e aterrou no cimento a que chamam realidade mudou de área. Esteve três anos na área da hotelaria e desde 2020 é analista de conteúdos. Tem 5 filhos, 1 gata, algumas plantas e cultiva amigos na varanda. Em 2022 publicou o seu primeiro livro, Centrifugar Angústias a 1600 rpm, a convite do Festival Mental e de sua curadora. Em 2023 O pequeníssimo livro de ti (Kotter). Tem um gosto especial em colocar-se em situações de desafio, para absorver o poder sedutor do desconforto e dele fazer combustível para escrita e para a vida.

Joaquim Paulo Nogueira abre o segundo momento da sessão. Com um desafio:

«Tudo começou quando Roberto, escritor com extensa obra publicada no facebook e na blogosfera, ao sentir que poderia morrer naquela tarde, foi acometido de uma súbita pulsão para escrever. Na esplanada do Largo de Camões procurou inspiração. Ao deambular pela paisagem humana da esplanada encontrou uma mulher vestida de negro e de grandes óculos escuros. Ela parecia ter uma atitude hostil em relação à curiosidade de Roberto. Este, irritado com o facto dela se recusar a entrar na ficção, dá- lhe o pior nome que consegue imaginar: Purpurina.

Entretanto esta mulher baixa os óculos escuros e ele descobre que ela esconde duas nódoas negras nos olhos. Começa logo ali a imaginar uma personagem que foi vítima de violência doméstica, iniciando um processo de pesquisa sobre este fenómeno. Na sua irrealidade esta personagem vai afectar as vidas reais do circulo de amigos mais próximos de Roberto. Dentro destas, as suas amigas são especialmente críticas da sua capacidade de conseguir perceber os contextos da violência doméstica e muito especialmente desta personagem. Em seu socorro vem Eduardo, homem do teatro, que, para desbloquear o processo criativo, lhe propõe fazerem um jantar imersivo e convidar a actriz Maria Zamora para defender o papel da Purpurina. Zamora aceita e pede para que a sua personagem se possa chamar Matilde.

É esse jantar que vamos recriar aqui hoje, nesta leitura.»

Em Puta de Vida, que aborda os temas da violência doméstica (as personagens Matilde, Maria Zamora e Inês), da doença (Matilde) e do racismo (Jorge), um vaivém entre o real e o ficcional leva-nos ao encontro de uma personagem, Purpurina, que vai sendo construída pela imaginação e especulação do grupo de amigos. E vai acabar por destapar uma situação real de violência que se ocultava nas suas vidas. Na comunidade de leitura, este capítulo é particularmente propício para abrir espaço ao debate. 

Joaquim Paulo Nogueira nasceu em 1962. Dramaturgo desde 1987. Também actor, encenador e animador de expressão dramática. Das suas catorze peças de teatro, três são inéditas. Publicado em publicações teatrais (Portugal, Espanha e Bélgica). Puta de vida, romance, foi publicado na Abysmo (2021). Formado em Ciências da Comunicação, fez jornalismo teatral na Rua de Baixo, Revista Actor e DN Jovem. Na Rádio Movimento faz o programa Bairro do Amor (em 2022/23 Border Line). Participa em sessões de poesia.

O terceiro momento é despoletado pela voz de Mário Fava Fagulha, lendo poemas d’O Poeta, a obra póstuma de Abel Fava Caipira (1937-2019), recentemente editada pelo filho, Rui Caipira. Momento de homenagem a uma voz partida que deu à cidadania – o viver e falar em conjunto – uma cor, uma sensibilidade, um dizer das coisas que torna as palavras mensagens do mundo. Torranense, Caipira escreveu rimadas crónicas do seu tempo. É uma voz que jamais se calou e que chega hoje até aos nossos ouvidos na edição em que vários textos são geniais modos de acedermos à Graça das coisas. E uma visão do mundo e da sociedade, da natureza e do humano, profunda e abrangente, exprimindo-se como que em vinhetas poderosamente visuais.

Como no mote de “Muitos desejam saber”:

Muitos desejam saber

Esse saber proibido

O segredo da tempestade 

Onde o mundo está vestido

Nas palavras de Rui Caipira, escritas para a edição, desvela-se toda uma consciência da palavra no quotidiano alentejano e, no fundo, o labor de editor capaz de lhes reconhecer valor:

«Rui, o filho mais velho, só esteve com o seu pai até aos doze anos. Porém, esse foi o período em que o Poeta Abel Caipira mais se evidenciou. Por isso, embora a separação tenha sido precoce, terá sido o filho que mais histórias ouviu da sua boca e que inúmeras vezes o encontrou quase submerso no aglomerado de amigos e admiradores que o escutavam embevecidos na taberna. Nessas alturas, o miúdo quase esquecia que o tinha ido chamar porque o jantar já estava pronto e ficava, também ele, envolvido pelo balancear daquelas rimas, tão espontâneas, tão naturais, como o coro dos grilos na relva do canteiro ali ao lado.  

Estas vivências foram suficientes para que ficasse e permanecesse influenciado, admirando o poeta até aos dias de hoje, como uma personagem multifacetada no mundo das artes representativas.  

Anos volvidos, vivendo longe, Rui visitava-o de vez em quando, e seu pai – Poeta, mostrava-lhe rascunhos ou então recitava as novas quadras já memorizadas. Por isso, ofereceu-lhe os três primeiros livros para rascunhos e incentivou-o a fazer um registo de todas as quadras já produzidas, dando-lhe também indicações de como as organizar.  As quadras passaram então, a ser registadas e arquivadas de forma estruturada, fazendo um total de quatro livros rascunhos. O título “A Minha Voz Não Se Cala” foi sugerida pelo seu filho e mencionado pelo Poeta, em todos os seus quatro livros rascunhos. 

Após o seu falecimento os rascunhos foram recuperados, pelo seu filho. Embora grande parte da obra já fosse por ele conhecida, sabia que estava perante uma obra literária. A sua riqueza era demasiado importante para que ficasse esquecida no tempo.»

Ora contemplação transformada em diálogo infantil, no mote de “Diga-me senhor jardineiro”…

Diga-me senhor jardineiro
Se lá tem no seu jardim
Uma flor igual a esta
Que eu tenho ao pé de mim

Ora num filosofar pessoano, como em “O mundo imita uma nora” – em que somos os alcatruzes. Filosofar esse que dispara uma espécie de máxima em “Se eu deixasse de criar”: 

Se eu deixasse de criar
Não desse fruto nem pão
Todos morriam de fome
E só com dinheiro na mão

A obra de Fava tem ainda o mérito acrescido de colocar poemas em diálogo uns com os outros. Um desses diálogos – entre o dinheiro e a terra – é explícito, e destaca-se na obra como virtuoso exemplo de um saber e de um conhecer sem tempo, a reflexão ética transmutada em poesia popular. Literatura com o ‘L’ bem grande.

Quem foi este poeta? Rui faz-se chegar a sua biografia: «Abel Fava Caipira, nasceu em 26 de julho de 1937 na vila do Torrão, sede de freguesia do mesmo nome, concelho de Alcácer do Sal e distrito de Setúbal. Seus pais Mateus Roma Caipira e Maria Arsénia Fava, tiveram mais três filhos, António Manuel Fava Caipira, Guilhermino Fava Caipira, António Fava Caipira e duas filhas, Ana Arsénia Fava Caipira e Carmelita do Céu Fava. Abel, viria a ser o penúltimo dos filhos.

Nessa época, Portugal encontrava-se numa ditadura e os tempos eram difíceis para as famílias, o que levava a que muitas crianças, sobretudo das zonas rurais do interior, não fossem à escola.

O poeta, embora pertencesse a uma família de fracos recursos, frequentou a escola primária até ao quarto ano. Foi um aluno dotado, que se distinguia na leitura e na escrita. 

Diferenciava-se entre os outros alunos da turma, revelando grande capacidade intelectual, sendo mesmo dispensado no final do ano letivo do então muito difícil exame da 4.º classe. Após concluir o ensino primário, foi trabalhar para as lides do campo onde fazia de tudo em função das estações do ano. Mais tarde, foi tratorista e manobrador de máquinas de grande porte, caterpílares, escavadoras e de terraplanagem em várias obras, realizadas em Portugal e nas ilhas. 

Abel, o Poeta, casou-se com Ana Rosa Silvestre e desta relação nasceram dois rapazes e uma rapariga. Rui, Abel e Maria. No dia 10 de novembro de 1978, Ana, sua esposa, faleceu com apenas 36 anos, provocando a sua própria morte por suicídio. Esta tragédia inesperada, obrigou a que os seus dois filhos Rui e Abel fossem acarinhados por familiares. Maria, a mais nova, desde tenra idade, já estava ao cuidado de uma tia materna. 

No decurso da sua vida, o poeta veio a ter várias relações, mas sem sucesso. Ana, sua irmã mais velha, residia no monte do Carrascal perto das Alcáçovas, freguesia de Viana do Alentejo, ajudava-o como podia, lavava-lhe a roupa, almoçava e jantava com ela aos fins de semana. Carmelita sua irmã, veio mais tarde convidá-lo para residir na sua casa em Évora. Nesta cidade o poeta veio a conhecer uma outra mulher, de nome Juventina. Juventina era viúva e não tinha filhos.  Foi sua companheira por mais de vinte anos, sendo vítima de uma doença neuro degenerativa, Alzheimer, que a levou ao falecimento no dia 7 de maio de 2016 com 77 anos. Após a morte da sua companheira, o poeta regressou à sua terra natal ficando alojado na sua residência, onde também aí permanecia o seu filho Abel. Maria sua filha, que residia bem perto, viria a apoia-los nas lides da casa e noutras situações, fundamentalmente relacionadas com a saúde do Poeta. Nesse ano, viria a ser internado várias vezes devido a complicações de doença respiratória. 

Aos oitenta anos, foi acolhido pelo lar residencial da Misericórdia de Vila Alva, com sede na freguesia de Cuba. Em 28 de janeiro de 2019, estava internado no hospital de Beja onde uma infeção respiratória veio a revelar-se mais forte e levou o Poeta para o eterno descanso, vindo a ser sepultado no cemitério do Torrão.»

Em jeito de aperitivo para a leitura, fechemos esta entrada no ACONTECE com a primeira estrofe de “Se eu deixasse de criar” – intemporal mistério em assertivo discurso direto:

De tudo quanto há nesse seio
Eu sou a mãe verdadeira
Porque a minha sementeira
De tudo tem produzido
O meu nome é conhecido
Em qualquer particular
Eu posso-te assim falar
Com a máxima franqueza
Mas que te serviria a riqueza
Se eu deixasse de criar

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